A segunda edição do N5X Summit 2025 representou um marco para as discussões sobre o futuro do trading de energia no Brasil. O encontro reuniu mais de 200 profissionais dos setores energético e financeiro, representando mais de 110 instituições nacionais e internacionais como ANEEL, B3, Banco Central, BNP Paribas, Bradesco, CCEE, CVM, Danske, Axia, Santander, Shell e Statkraft.
Reunimos uma comunidade de líderes e especialistas, que durante mais de 5 horas de discussões, exploraram como a chegada de uma contraparte central ao mercado de trading tem potencial para destravar o setor e aumentar segurança e liquidez das operações de energia no país.
Com a base teórica consolidada durante os cinco painéis iniciais do evento, em que mapeamos as dores do mercado bilateral, a segurança do MCP, os fundamentos de uma clearing, seu modelo de participantes e a arquitetura de contratos futuros, a conversa agora se volta para a prática, a partir do alicerce que sustenta a confiança de todo o sistema: a estrutura de salvaguardas de uma CCP.
O sexto encontro, com o tema "Gestão de Risco Centralizada e Estrutura de Salvaguardas", detalhou como funciona a mecânica de proteção de uma Contraparte Central (CCP). O debate utiliza casos históricos de crises globais para demonstrar como o cálculo preciso de margens e uma defesa em camadas garantem a resiliência do mercado, mesmo em cenários de estresse extremo.
Para explicar essa engenharia, reunimos uma mesa de C-Levels, responsáveis pela gestão de risco em grandes infraestruturas de mercado: Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3), Juan Zhang (Chief Risk Officer da Nodal Exchange) e Carlos Meyer (Diretor de Operações e Risco da N5X). O painel contou com a mediação de Camila Pantera, Head Regulatória e Jurídica da N5X.
▶️ Assista abaixo ao vídeo completo deste encontro, disponível assim como os demais painéis do N5X Summit 2025, em nosso canal do YouTube:
Os tópicos discutidos durante o painel
Neste encontro, os painelistas detalharam o funcionamento de uma estrutura de salvaguardas, que é considerada o mecanismo que garante a segurança de uma Contraparte Central, explorando desde sua lógica de proteção em camadas até a matemática utilizada para o cálculo de margens.
O debate também analisou casos históricos de estresse e volatilidade para comprovar a eficácia dessa infraestrutura em situações reais de mercado e explicou como a gestão de colaterais viabiliza o acesso ao sistema para mais agentes.
Confira os tópicos discutidos durante o encontro:
- Parte 1 – A arquitetura de defesa em uma estrutura de salvaguardas: a segurança de uma clearing não é feita de forma única, mas em um sistema de defesa em camadas. Entenda a lógica hierárquica de proteção, o funcionamento da "cascata de inadimplência" e por que o capital da própria bolsa, o Skin in the Game, é essencial para o alinhamento de interesses.
- Parte 2 - A matemática dos riscos e como é calculada a exposição dos agentes: momento de entender o racional matemático que define o valor das garantias exigidas aos participantes. Explicamos como este cálculo converte riscos de mercado, liquidez e fluxo de caixa em proteção financeira, considerando particularidades do setor elétrico como a sazonalidade e as diferenças de preço entre regiões.
- Parte 3 – A prova de resiliência da Contraparte Central em crises globais: analisamos eventos históricos como a quebra do Lehman Brothers, a Covid-19 e a crise energética do Texas para demonstrar que a infraestrutura de Clearing manteve sua solvência e a continuidade das operações. Veja como a atuação de uma CCP impede que crises se transformem em colapsos sistêmicos
- Parte 4 - A gestão de colaterais e o papel facilitador dos Membros de Compensação: entenda por que o uso de dinheiro e títulos públicos é a única forma de garantir a liquidez do sistema em tempo real. Saiba também como os Membros de Compensação resolvem essa possível restrição de caixa para as empresas, transformando ativos corporativos em garantias reconhecidas para operação em Contraparte Central.
A segurança de um mercado com Contraparte Central opera através de múltiplos níveis de defesa, funcionando muito além da simples exigência de garantias.
Enquanto as chamadas de margem, que são os montantes financeiros requisitados para coberturas dos riscos, cobrem a exposição diária dos agentes, a estrutura de salvaguardas é o complexo mecanismo que assegura a continuidade das operações, mesmo diante de inadimplências severas.
Para compreender a magnitude do modelo, é necessário analisar primeiro a organização destes recursos. Iniciamos descrevendo como se distribui a hierarquia dessas proteções, detalhando a lógica por camadas que blinda os participantes adimplentes e também garante o total alinhamento de interesses entre o mercado e a bolsa.
Parte 1 – A arquitetura de defesa em uma estrutura de salvaguardas
A gestão de risco em uma CCP atua em duas frentes simultâneas: a prevenção, que busca mitigar a probabilidade de falhas, e a contenção, desenhada para agir quando o improvável acontece.
Embora modelos matemáticos e monitoramento constante reduzam drasticamente as incertezas, uma infraestrutura de mercado robusta precisa ser construída considerando sempre o pior cenário possível.
É nesse possível contexto que as estruturas de salvaguardas assumem seu papel: o de uma "rede de segurança". Elas formam o sistema de blindagem que garante que, mesmo diante da quebra de um participante relevante ou de risco sistêmico, o mercado permaneça solvente, líquido e operacional.
O que são as estruturas de salvaguardas e para que servem?
Em termos práticos, as salvaguardas são o conjunto de recursos financeiros e regras pré-estabelecidas que uma Contraparte Central utiliza para absorver prejuízos em caso de inadimplência (default). Elas funcionam como reservas de capital segregadas, prontas para serem acionadas, imediatamente e individualmente, caso um participante não honre seus compromissos.
No entanto, a atuação da CCP é tanto financeira quanto operacional: um exemplo disso é que antes mesmo de consumir as garantias monetárias para cobrir perdas, a bolsa assume a posição do participante inadimplente e realiza o seu encerramento (close-out), encerrando sua exposição ao mercado e garantindo que a volatilidade de preços não se transforme em uma crise de larga escala.
Dessa forma, a função primordial desse mecanismo não é apenas pagar a conta, mas impedir o perigoso “efeito dominó”, que pode derrubar outros agentes saudáveis e transformar o problema em um risco sistêmico.
A lógica da proteção em camadas e a "Cascata de Inadimplência”
Para garantir que a inadimplência de um único participante não comprometa a segurança de todo o ecossistema, a gestão de risco de uma clearing segue uma hierarquia estrita de responsabilidades.
O princípio fundamental é que os recursos de quem torna-se inadimplente devem ser consumidos primeiro (Defaulters Pay), preservando ao máximo o patrimônio dos participantes adimplentes e da própria bolsa (Survivors Pay), que são acionados apenas em última instância.
👉 Os conceitos de Defaulters Pay e Survivors Pay estão detalhados no artigo: como funciona uma Contraparte Central (CCP) e qual seu impacto para o mercado brasileiro de energia.
Essa filosofia de responsabilização individual se traduz, na prática, em uma lista ordenada para a execução de garantias, conhecida tecnicamente como "Cascata de Inadimplência" (ou Default Waterfall).
Trata-se do roteiro exato que a clearing segue para cobrir o prejuízo. A primeira linha de defesa é sempre a margem e as garantias do inadimplente. Se esses recursos não forem suficientes, a proteção escala para o capital próprio da Bolsa, conhecido como “skin in the game”, que atua como uma trava de segurança antes de atingir o patrimônio coletivo.
Então, somente em última instância, aciona-se o Fundo de Liquidação (que é o mutualizado entre todos os membros). Confira na tabela abaixo a hierarquia normalmente utilizada em modelos de risco robustos:

A analogia do sistema defensivo de um time de futebol
Para visualizar como essa teoria se aplica, é possível comparar a estrutura de salvaguardas a um sistema de defesa de um time de futebol: a defesa não depende de um único jogador, mas de linhas sucessivas que têm funções específicas para impedir que a "bola" (o prejuízo) chegue ao "gol" (o colapso sistêmico).
Carlos Meyer (N5X), utilizou essa metáfora para ilustrar a robustez do modelo:
"A estrutura de salvaguardas é como um sistema defensivo do time de futebol. [...] Nossos atacantes estão ali atrapalhando os zagueiros dos outros. Então, a gente já está com a margem requerida [...] No momento em que essa barreira não foi suficiente [...] a gente tem a estrutura de volantes, que são o saldo operacional dos membros de compensação. [...] E, por fim, se tudo passou, ainda tem o skin in the game da N5X: o nosso goleiro.” - Carlos Meyer (Diretor de Operações e Risco da N5X)
A existência dessas múltiplas barreiras é o que garante a resiliência do sistema contra cenários em que a inadimplência de um agente ocorre simultaneamente a uma variação extrema de preços.
Enquanto as margens iniciais são calibradas para cobrir a quase totalidade das flutuações normais e de alta volatilidade, as camadas subsequentes existem para absorver os chamados "eventos de cauda", situações estatisticamente raras e de estresse extremo. É essa arquitetura escalonada que permite à infraestrutura suportar choques que, isoladamente, seriam fatais para qualquer agente individual.
Marcelo Carvalho (B3), explicou por que essa sobreposição é necessária:
“São múltiplas camadas de proteção e cada camada te protege para uma ofensa um pouco maior. Então, a margem vai te proteger para um determinado nível de variação de preço. [...] Depois disso, você vai ter o fundo de liquidação, que vai te proteger para um nível ainda maior [...] O que essas camadas estão fazendo é aumentar o nível de proteção para eventos de variação de preço em conjunto com a inadimplência.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
Skin in the game: o alinhamento de interesses como pilar de confiança
Entre todas as camadas apresentadas na cascata, uma merece destaque especial pela mensagem que transmite ao mercado: a contribuição de capital da própria infraestrutura de clearing, conhecida também como skin in the game.
Embora financeiramente atue como mais uma barreira de absorção de perdas, seu valor principal é a governança oferecida. Ao colocar seu próprio patrimônio em risco antes de solicitar o rateio de prejuízos entre os participantes adimplentes (via fundo mutualizado), a Contraparte Central prova que confia na precisão de seus modelos de risco para todos os agentes.
Esse mecanismo cria um alinhamento de interesses. Se o modelo falhar, a própria instituição sofre as consequências patrimoniais antes de todos, o que incentiva a manutenção de critérios de margem sempre rigorosos e atualizados.
Para que tudo isso funcione e a estrutura de salvaguardas só precise ser acionada em casos extremos, é vital que a primeira camada, de margens de garantia, seja calculada com exatidão.
A seguir, detalhamos como uma CCP transforma a incerteza do mercado em valores precisos.
Parte 2 - A matemática dos riscos e como é calculada a exposição dos agentes
Se a estrutura de salvaguardas é o "escudo" que protege o mercado, o modelo de risco é a inteligência que define o tamanho e a qualidade da proteção oferecida.
Dessa forma, o grande desafio de uma Contraparte Central é, ao mesmo tempo que exige garantias, calibrar os montantes solicitados com precisão cirúrgica.
Mas por que, na prática, esse valor é exigido? A razão não é punitiva, mas puramente operacional. Quando um participante se torna inadimplente, a CCP assume sua carteira e precisa ir a mercado imediatamente para encerrá-la (vender o que estava comprado ou comprar o que estava vendido).
O valor da margem serve, portanto, para cobrir qualquer diferença de preço ou prejuízo que ocorra especificamente durante esse processo de zeragem. É a garantia de que, se o mercado se mover contra a posição enquanto a bolsa tenta se desfazer dela, haverá recursos do próprio inadimplente para cobrir essa perda, sem necessidade do patrimônio dos demais.
Decompondo margens e os riscos de mercado, liquidez e fluxo de caixa
Para chegar a esse valor de cobertura com precisão — sem pedir de menos (o que pode expor o sistema) nem de mais (o que remove a liquidez de mercado) —, o modelo decompõe o risco financeiro em três vetores principais: mercado, liquidez e fluxo de caixa. O objetivo é transformar incertezas operacionais em um número financeiro preciso.
Risco de Mercado
Refere-se à probabilidade do preço variar contra a posição da CCP durante o intervalo necessário para o encerramento da posição. Se a bolsa precisa vender um contrato que herdou de um inadimplente, existe o risco deste preço variar antes que a venda seja concluída. A margem precisa cobrir essa oscilação potencial.
Risco de Liquidez
Mede a dificuldade operacional de encerrar determinada posição. Mesmo que o preço de tela seja favorável, uma carteira muito grande pode não encontrar compradores imediatos. O modelo calcula o custo adicional (deságio) ou o tempo extra necessário para desfazer essa posição sem causar uma distorção artificial nos preços.
Risco de Fluxo de Caixa
Como a CCP se interpõe em todas as operações, ela precisa pagar os ajustes diários invariavelmente em D+0. Se um membro falha, a bolsa tem de honrar seus pagamentos no ato, mas pode só receber o dinheiro da venda das garantias desse membro dias depois. O modelo precisa prever um caixa líquido o suficiente para cobrir essa possível diferença.
Mas como esses vetores distintos se transformam em uma única cobrança? A lógica do cálculo é integrativa: o modelo matemático estima o impacto financeiro potencial de cada um desses cenários — a perda provável por preço, o custo de liquidez para sair da posição e o custo de financiamento do caixa — e os consolida.
O resultado dessa equação é o valor exato que o participante precisa depositar como Margem Requerida. Não se trata, portanto, de uma taxa administrativa, mas de uma provisão calculada para garantir que, no pior cenário, a CCP tenha recursos líquidos suficientes para encerrar a posição sem prejuízo para ela e para outros agentes.
Essa metodologia foi detalhada por Marcelo Carvalho (B3), explicando como, dentro da Bolsa de Valores do Brasil, a matemática traduz essas variáveis em montantes tangíveis:
“O que o modelo está fazendo é pegar esse risco de crédito [...] e traduzir ele em, basicamente, três tipos de risco diferentes. Risco de mercado, a probabilidade do preço variar. [...] O segundo risco que o modelo está tentando mitigar é o risco de liquidez. [...] E o terceiro risco [...] é o risco de descasamentos de fluxo de caixa. [...] O que o modelo de risco da B3 está fazendo é tentar estimar esses três riscos e transformar esses três riscos num número que é a margem requerida.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
As variáveis específicas do mercado de energia
Enquanto no mercado financeiro tradicional as variáveis são puramente econômicas, no setor de energia existe uma camada adicional de complexidade: a realidade da entrega física.
Como a eletricidade precisa ser gerada e consumida instantaneamente, não é possível "esconder" o ativo. Isso insere restrições geográficas e climáticas diretamente na equação de risco, exigindo que o modelo calibre a margem considerando três fenômenos específicos da commodity.
Sazonalidade e Clima
O risco de preço da energia não é linear ao longo do ano. Meses de temperaturas extremas ou de transição hidrológica carregam uma probabilidade estatística de volatilidade muito maior.
Em mercados maduros, por exemplo, períodos de inverno rigoroso ou picos de verão exigem, por definição, margens mais altas para cobrir choques de demanda. O modelo precisa identificar o período vigente para cobrar a garantia adequada àquele momento.
Restrições de Transmissão
Diferente de uma ação, que possui o mesmo preço independentemente do local de negociação, a energia pode ter valores distintos dependendo do ponto de entrega.
Se houver um "gargalo" na rede de transmissão, o preço pode disparar em uma região e cair em outra simultaneamente. O modelo de risco deve considerar o custo desse diferencial de preço (spread) entre submercados para garantir que, caso a transmissão sature, a CCP esteja coberta.
Risco de Maturidade
O comportamento do preço também muda conforme o prazo do contrato.
No curto prazo, a volatilidade é ditada majoritariamente por eventos climáticos imediatos (como uma onda de calor); já no longo prazo (meses ou anos à frente), a precificação responde a fatores macroeconômicos e de infraestrutura (oferta e demanda agregada).
Por isso, as curvas de margem precisam ser distintas para estes diferentes horizontes temporais.
A criticidade da infraestrutura física, e como ela dita o tamanho da exposição financeira, foi ilustrada por Juan Zhang (Nodal Exchange):
“O diferencial é que lidamos com uma commodity única: a eletricidade. Infelizmente, ainda não é possível armazená-la de fato. Por isso, os preços no mercado spot variam intensamente dependendo das condições de oferta e demanda. E, como o spot flutua bastante, isso acaba se propagando para os contratos futuros, seja para o próximo mês ou para os seguintes. Portanto, é preciso analisar a fundo o perfil de risco desses contratos. O risco de mercado — que corresponde à margem inicial cobrada pela Câmara — serve justamente para cobrir essa exposição. No mercado de eletricidade, existem vetores muito singulares que afetam o próprio risco.” - Juan Zhang (Chief Risk Officer da Nodal Exchange)
Período de encerramento: por que a margem não é feita para cobrir toda a volatilidade?
Um equívoco comum ao analisar o risco de infraestruturas de mercado é acreditar que a margem exigida precisa cobrir a volatilidade total do ativo ao longo de toda a vida do contrato. Se fosse assim, em mercados voláteis como o de energia, em que os preços podem oscilar drasticamente em um semestre, o custo de entrada seria proibitivo.
Na realidade, o cálculo da margem foca em um intervalo de tempo muito específico, tecnicamente chamado de Margin Period of Risk (MPOR) ou horizonte de encerramento.
Este conceito define a janela temporal estimada entre o momento em que um participante deixa de honrar seus pagamentos (inadimplência) e o instante em que a CCP consegue efetivamente liquidar sua posição no mercado.
Como a função da CCP é estancar o risco imediatamente, a margem depositada precisa ser suficiente apenas para cobrir a oscilação de preço durante esses dias (ou horas) de incerteza operacional.
Se o modelo estima que a zeragem leva dois dias, a garantia precisa cobrir a pior variação de preço estatisticamente provável dentro dessa janela de dois dias, e não a variação acumulada de seis meses.
Marcelo Carvalho (B3) esclareceu essa distinção temporal, desmistificando a relação entre a volatilidade histórica do setor elétrico e o custo final da garantia:
“A CCP não tem que ter margem para garantir uma variação de preço de 300% que acontece ao longo de seis meses. [...] Ela não é construída para isso. [...] O meu problema como CCP é resolver uma variação que às vezes ocorre dentro do dia. [...] E eu preciso ter margem para cobrir esse problema de horas ou um problema de uma variação de um dia ou de uma variação de dois dias, no máximo.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
A teoria matemática é sólida, mas como ela resiste à realidade? A história dos mercados financeiros e de energia oferece casos práticos em que o modelo centralizado foi testado ao limite — de crises bancárias globais a eventos epidêmicos e climáticos extremos — e sempre provou a sua resiliência.
A seguir, explicamos e analisamos como essas estruturas sobreviveram às maiores crises das últimas décadas.
Parte 3 – A prova de resiliência da Contraparte Central em crises globais
A verdadeira robustez de uma infraestrutura de mercado é provada quando o impensável acontece. É nos eventos chamados de "cisnes negros", como crises sistêmicas, colapsos bancários ou choques climáticos, que a diferença entre o modelo bilateral e o centralizado deixa de ser um debate filosófico para se tornar uma questão de sobrevivência.
As últimas décadas nos ofereceram momentos de estresse em que a mesma crise atingiu, simultaneamente, mercados operados com contraparte central (cleared) e mercados de balcão (uncleared).
Isso nos permite comparar, com dados reais, quem recebeu o seu dinheiro de volta e quem ficou com um contrato sem valor na mão. A seguir, analisamos alguns desses casos históricos.
A eficiência da proteção de capital no colapso do Lehman Brothers em 2008
A quebra do Lehman Brothers em setembro de 2008 foi a maior falência da história dos Estados Unidos e um dos testes definitivos de risco de crédito para a arquitetura financeira global.
Como a instituição era uma gigante tanto nas bolsas organizadas quanto no mercado de balcão, detentora de um portfólio de derivativos estimado em US$ 35 trilhões, o evento criou um cenário de comparação perfeito entre a segurança dos contratos protegidos por CCPs e a vulnerabilidade daqueles negociados bilateralmente.
No ambiente centralizado (Cleared), a resposta foi imediata. Assim que a inadimplência foi declarada, algumas das principais infraestruturas de mercado globais, como a LCH (London Clearing House) e a CME (Chicago Mercantile Exchange), ativaram suas regras de proteção, isolando e leiloando as posições do banco.
O resultado dessa gestão foi que, na LCH, a liquidação de um portfólio de US$ 9 trilhões em swaps foi concluída em poucas semanas e consumiu apenas cerca de 35% da margem inicial depositada pelo próprio Lehman. Nenhum outro participante teve prejuízo e o fundo de garantia sequer precisou ser acionado.
Juan Zhang (Nodal Exchange) destacou no painel a velocidade dessa resolução em comparação ao cenário externo:
“Se você olhar a performance nos mercados com clearing... o CME conseguiu, basicamente, fechar o seu portfólio em um pequeno fim de semana. [...] Então, não ocorreram perdas. Não ocorreram perdas em nenhum outro membro do Clearing House.” - Juan Zhang (Chief Risk Officer da Nodal Exchange)
Já no mercado bilateral (Uncleared), a ausência de uma contraparte central gerou um colapso operacional e jurídico. Sem margens pré-depositadas suficientes ou regras de encerramento automático, a liquidação tornou-se uma batalha legal sobre valores e responsabilidades.
Enquanto os participantes da bolsa resolveram o problema em dias, os credores bilaterais enfrentaram processos judiciais que se arrastaram por mais de uma década para recuperar apenas frações do valor original.
Marcelo Carvalho (B3) reforçou como essa distinção salvou o mercado organizado do contágio sistêmico:
“Em 2008, um cara quebrou e esse cara derrubou um monte de gente que estava teoricamente zerado em risco de mercado, porque tinha comprado e vendido, portanto, estava com a exposição a risco de mercado zero, mas, de repente, se viu exposto a risco de crédito quando uma perna daquele contrato não pagou e ele tinha que pagar a outra. […] Então, esse é um grande benefício de você ter liquidação em contraparte central. Se você zera a tua exposição a risco de mercado, você zera também a tua exposição a risco de crédito.“ - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
A solidez operacional diante da volatilidade de preços na Covid-19
Se 2008 foi um teste global para o risco de crédito, a pandemia de Covid-19, especialmente em março de 2020, representou a prova definitiva para os Riscos de Mercado e Liquidez. Diferente da crise bancária americana, o gatilho não foi a insolvência de uma instituição financeira, mas um choque que fez os preços dos ativos derreterem globalmente e em velocidade recorde.
No mercado brasileiro, o impacto foi histórico. O mecanismo de Circuit Breaker (interrupção das negociações) da B3 foi acionado oito vezes em um único mês. Em um intervalo de apenas dois dias, o Índice Bovespa registrou uma queda acumulada de aproximadamente 21%.
Em um ambiente bilateral (Uncleared), uma oscilação dessa magnitude frequentemente leva ao colapso dos contratos: a parte perdedora, ao ver sua dívida explodir, muitas vezes opta pelo default por não ter liquidez ou incentivo para honrar o compromisso.
Estatisticamente, esse foi um "evento de cauda" clássico — um movimento de preço tão brusco e raro que escapa das curvas normais de probabilidade. No entanto, a arquitetura de salvaguardas de uma CCP, desenhada para absorver este tipo de impacto, funcionou conforme o planejado.
O modelo de risco reagiu automaticamente à explosão de volatilidade, disparando chamadas de margem intradiárias para garantir que a exposição dos participantes estivesse coberta em tempo real. Assim, a solvência da câmara foi mantida e nenhuma corretora ou banco quebrou sistemicamente por conta da oscilação.
Marcelo Carvalho (B3) relembrou no painel como a estrutura passou ilesa por esse teste de estresse, justamente por ter sido calibrada para o pior cenário:
“Aqui no Brasil, a gente viu o que foi talvez a maior variação no índice Bovespa certamente nos últimos 20 anos em dois dias. [...] E, de novo, sem nenhuma inadimplência que atingisse o mercado de clearing. E, de novo, por que disso? Porque o setup desse mercado, o setup de uma clearing, ele é feito para lidar com esses eventos extremos de variação de preço.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
O colapso estrutural durante o “Texas Freeze” (2021) e a materialização do risco de performance
Enquanto os casos de 2008 e da Covid-19 ilustraram riscos essencialmente financeiros, a Tempestade de Inverno “Uri”, que congelou o estado do Texas, nos Estados Unidos, em fevereiro de 2021, expôs a vulnerabilidade exclusiva dos mercados de commodities: a dependência de uma infraestrutura física que pode falhar.
Diferente de ações ou moedas, a energia precisa ser gerada e transportada fisicamente. Quando a tempestade congelou gasodutos e turbinas eólicas, a oferta despencou exatamente no momento em que a demanda por aquecimento batia recordes históricos.
Diante dessa escassez real, o regulador local fixou o preço spot no teto de US$ 9.000/MWh e o manteve nesse patamar por dias seguidos.
Esse cenário demonstrou a fragilidade do mercado bilateral (Uncleared) diante do chamado "Risco de Performance". Esse risco ocorre quando o vendedor, impedido fisicamente de entregar a energia (porque sua usina parou), é obrigado a comprá-la no mercado à vista para honrar o contrato.
Como o preço estava no teto (US$ 9.000), o custo para cumprir esses contratos bilaterais tornou-se impagável. Sem a interposição de uma CCP e sem garantias financeiras pré-depositadas, gigantes como a Brazos Electric Power Cooperative colapsaram, entrando com pedido de falência ao acumularem dívidas bilionárias em questão de dias.
Na prática, a contraparte compradora ficou duplamente descoberta: sem a energia física e sem a compensação financeira. Em contrapartida, no mercado centralizado (Cleared), operado por bolsas como a Nodal Exchange, o sistema manteve-se íntegro.
A exigência rigorosa de margens, calculadas por modelos que previam inclusive eventos climáticos extremos, garantiu a liquidez do sistema. Mesmo com a volatilidade, as perdas foram cobertas pelas garantias já depositadas e os pagamentos foram processados.
Juan Zhang (Nodal Exchange) explicou como a centralização impediu que o problema físico se tornasse uma crise de crédito sistêmica:
“Muitas comercializadoras quebraram por conta disso. Porque, normalmente, você compra energia a 50 dólares, mas agora, por centenas de horas, você precisa comprar a 9.000 dólares. […] O outro grande motivo é que alguns optaram por fazer hedge, o que funciona bem no papel. Mas acontece que alguns desses contratos bilaterais, na hora que você realmente precisa deles, eles podem não performar. Isso criou muitos problemas para empresas que achavam estar protegidas. Como elas não fizeram o hedge através de mercados com clearing centralizada, e sim no mercado bilateral, assim que a contraparte falhou, elas também ficaram em apuros.” - Juan Zhang (Chief Risk Officer da Nodal Exchange)
Estes episódios históricos — a crise de crédito do Lehman Brothers, o choque de volatilidade da Covid-19 e o colapso físico no Texas — formam um corpo de evidências importante.
Enquanto o modelo bilateral depende da "boa saúde" contínua das contrapartes (o que é incerto em crises), o modelo centralizado depende de regras matemáticas e garantias previamente alocadas (o que torna o processo auditável e seguro).
Porém, para que essa engrenagem de proteção gire com a velocidade exigida, liquidando posições em dias ou horas, e não em meses ou anos, ela precisa de um combustível específico: ativos de alta liquidez. Não basta ter apenas patrimônio, é preciso ter garantias disponíveis e aceitas pela CCP.
É neste momento que torna-se essencial a gestão de colaterais, trabalho que viabiliza operacionalmente uma engenharia financeira de alta sofisticação e segurança.
Parte 4 - A gestão de colaterais e o papel facilitador dos Membros de Compensação
Depois de analisarmos como uma infraestrutura centralizada protege o mercado em momentos de crise, resta entender a engrenagem que faz tudo isso funcionar no dia a dia: as garantias financeiras (ou colaterais).
Para que uma contraparte central consiga estancar uma crise instantaneamente, como vimos no caso do Lehman Brothers, ela precisa de acesso imediato a recursos líquidos. Por isso, a solidez de todo o sistema depende não só de quanto os participantes depositam, mas da disponibilidade do que é depositado.
Os produtos financeiros aceitos como garantia e a lógica da liquidez imediata
Uma pergunta natural para quem entra nesse mercado é: "por que não posso usar minha usina, meus imóveis ou meus recebíveis de longo prazo como margem?". A resposta está na velocidade com que a conta precisa ser paga.
Em mercados de derivativos com liquidação financeira diária (D+0), como será o caso da N5X, os ajustes positivos precisam ser pagos em dinheiro no mesmo dia. Consequentemente, se um participante falhar, a CCP precisa converter as garantias desse membro em caixa quase instantaneamente para honrar os pagamentos devidos aos demais agentes.
Ativos como imóveis, maquinário ou fianças são valiosos, mas são de natureza de movimentação muito mais lenta. Vender um imóvel para cobrir um rombo pode levar meses. Durante esse tempo, o sistema ficaria descoberto.
É por essa razão que as Câmaras restringem as garantias primárias a ativos de liquidez imediata, majoritariamente dinheiro e Títulos Públicos Federais (TPF).
Marcelo Carvalho (B3) explicou essa "regra de ouro" durante o painel: a garantia tem que ter a mesma velocidade do produto negociado.
“O que uma CCP vai aceitar em garantia tem que estar intimamente associado e coerente com o mix de produtos que ela oferece. [...] Se eu tenho um produto que a liquidação é em D+0 (imediata), eu preciso ter garantias que eu consiga transformar em caixa em D+0. Então, eu acho que é importante as clearings aceitarem garantias que têm coerência com os produtos que elas carregam.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
O papel estratégico dos Membros de Compensação: transformando ativos em garantias e liquidez
À primeira vista, a exigência de garantias em dinheiro ou títulos públicos cria um desafio de eficiência financeira para empresas do setor produtivo.
A natureza do negócio de uma geradora ou comercializadora de energia é imobilizar capital em infraestrutura (usinas, linhas de transmissão) e não manter grandes reservas de caixa parado para cobrir chamadas de margem diárias.
Muitas dessas empresas enfrentam o cenário de serem abastadas em ativos operacionais, mas limitadas em liquidez monetária imediata. Elas possuem balanços sólidos, lastreados em recebíveis e contratos de longo prazo, mas converter isso em D+0 para atender à Bolsa seria custoso e ineficiente para o seu fluxo de caixa operacional.
É para resolver essa assimetria que existe a figura do Membro de Compensação (CM), geralmente na figura de grandes bancos, fundos e corretoras. Eles atuam como intermediários e provedores de eficiência de capital, através de um serviço conhecido globalmente como Transformação de Colateral (Collateral Transformation).
Nessa dinâmica, o Membro de Compensação utiliza sua alta capacidade de análise de crédito para aceitar ativos menos líquidos do cliente (como fianças bancárias, recebíveis de energia ou alienação fiduciária de ativos físicos) como contragarantia em uma operação bilateral.
Em posse dessa garantia privada, o banco utiliza sua própria tesouraria para depositar os títulos ou o dinheiro exigidos pela CCP em nome do cliente.
O resultado é um ganho sistêmico: a Bolsa recebe a garantia líquida que precisa para proteger o mercado; o banco é remunerado pelo risco de crédito que assumiu; e a empresa de energia consegue operar no mercado centralizado sem drenar o capital de giro necessário para suas operações principais.
Marcelo Carvalho (B3) destacou a função de "ponte de liquidez" um dos serviço mais importantes que os membros de compensação prestam ao ecossistema:
"Talvez seja o principal serviço que o membro de compensação presta, que é ajudar os seus clientes com essa questão de garantias e liquidez. [...] O membro de compensação pode tomar essa garantia [ilíquida] ou fazer uma operação de crédito [...] e depositar título público para mim, em nome do cliente. Isso facilita muito o acesso.” - Marcelo Carvalho (Chief Risk Officer da B3)
A estabilidade de uma contraparte central é o resultado de uma engenharia financeira e uma integração técnica precisas: modelos matemáticos que mensuram o risco, estruturas de salvaguarda em camadas que absorvem eventuais falhas e, como detalhamos agora, uma gestão de colaterais que provê a liquidez necessária para a operação.
Essa tríade forma a base operacional dos mercados centralizados ao redor do mundo. No entanto, a aplicação desse modelo global exige expertise e adaptações locais.
É para viabilizar essa infraestrutura no Brasil que a N5X fundamenta sua construção, unindo duas potências: a expertise global em bolsas de energia e o conhecimento profundo do mercado financeiro local.
N5X: a infraestrutura que materializa a evolução do mercado brasileiro de energia
Para que o mercado livre de energia alcance um novo patamar de liquidez e volume, é essencial uma infraestrutura construída com o mesmo rigor técnico, capaz de transformar os riscos operacionais em segurança e parâmetros gerenciáveis.
A N5X nasce para materializar essa arquitetura no país. Estamos avançando na construção de um arcabouço operacional que leva as melhores práticas globais de contraparte central para a realidade brasileira.
Essa construção é apoiada na união de duas potências. Combinamos a expertise em infraestrutura e a solidez financeira da B3 (via L4 Venture Builder) com a tecnologia de ponta e a liderança global em bolsas de energia do EEX Group.
O resultado dessa integração será um ecossistema financeiro capaz de mitigar riscos sistêmicos e atrair capital e alta liquidez, proporcionando formação de preços transparente e a eficiência que o desenvolvimento do setor elétrico exige.
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